Humanos modernos chegaram à Europa Ocidental 5 mil anos antes do que se pensava

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Os primeiros Humanos Modernos chegaram à parte mais ocidental da Europa há cerca de 41-38 mil anos atrás, cerca de 5 mil anos antes do que se pensava.
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Uma equipa do Centro Interdisciplinar de Arqueologia e Evolução do Comportamento Humano (ICArEHB) da Universidade do Algarve, liderada por Jonathan Haws, professor da Universidade de Louisville, EUA, com a participação de Nuno Bicho e João Cascalheira, da direção do ICArEHB, relata a descoberta de utensílios em pedra usados por estas comunidades, cujos resultados foram publicados esta semana na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).

As descobertas foram feitas na gruta arqueológica da Lapa do Picareiro, localizada na Estremadura, e que ligam o local a achados semelhantes em todo o continente europeu. A descoberta mostra uma rápida dispersão da nossa espécie por toda a Eurásia, após o seu primeiro aparecimento no sudeste da Europa. As ferramentas de pedra documentam a presença de Humanos Modernos no extremo oeste da Europa, numa época em que se pensava ainda existem populações neandertais na região. Esta descoberta tem implicações importantes para a compreensão da possível interação entre os dois grupos humanos e o desaparecimento das populações neandertais.

Até agora, a evidência mais antiga da nossa espécie a sul do rio Ebro, no norte de Espanha, vinha de Bajondillo, uma gruta localizada na zona de Málaga. As datas um pouco anteriores, publicadas no ano passado, ofereceram evidências interessantes, mas controversas, da presença antiga de Humanos Modernos na região. As datas e ferramentas em pedra provenientes de contextos estratigráficos seguros da Lapa do Picareiro fornecem evidências definitivas para a chegada do Homem Moderno muito antes do que se julgava. “As novas evidências apoiam definitivamente as implicações de Bajondillo para a chegada do Homem Moderno, mas ainda não está claro como eles cá chegaram”, disse Haws. “Provavelmente esses nossos antepassados migraram ao longo de rios no interior, mas uma rota costeira é também possível”.

“A migração dos humanos anatomicamente modernos por toda a Europa há muitos milhares de anos atrás é um aspeto central para a compreensão da ocupação da nossa espécie em todo o globo”, refere John Yellen, diretor do programa de Arqueologia e Arqueometria da National Science Foundation dos EUA, instituição homóloga da Fundação para a Ciência e a Tecnologia cá em Portugal, que financiou este projeto. “Esta descoberta dá-nos dados fundamentais que vão permitir a organização e investigações futuras sobre quando e como se deu a ocupação do território europeu pela nossa espécie e que tipo de relação tiveram com os Neandertais”.

As escavações arqueológicas na Lapa do Picareiro duram há cerca de 25 anos, pondo a descoberto, até ao momento, um registo de cerca de 50.000 anos de ocupação humana durante a última glaciação. A equipa revelou um conjunto de ferramentas em pedra em associação com milhares de ossos de animais resultantes de atividades de caça e processamento das carcaças dos animais.

Sahra Talamo, da Universidade de Bolonha (Itália) e do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology (Leipzig, Alemanha), juntou-se à equipa de investigação para determinar a idade das ocupações dos últimos Neandertais e primeiros Humanos Modernos. A investigadora utilizou técnicas avançadas de pré-tratamento das amostras e espectrometria de massa por acelerador (AMS) para datar os ossos que mostram evidências de marcas de corte e quebra intencional para extrair medula óssea, um alimento nutritivo e altamente valorizado consumido por essas comunidades. Os resultados das datações por radiocarbono situam a chegada de comunidades de Homem Moderno no intervalo entre 41.000 e 38.000 anos atrás. Por outro lado, a última ocupação Neandertal na Lapa do Picareiro ocorreu entre há 45.000 e 42.000 anos atrás.

Talamo afirma, “Os resultados de radiocarbono da Lapa do Picareiro não são apenas muito precisos em termos do método de datação, mas também demonstram o trabalho meticuloso dos arqueólogos no local. A importância da colaboração entre o especialista em radiocarbono e os arqueólogos é essencial para obter uma cronologia precisa como no caso do Picareiro.”

A análise espacial de dados tridimensionais de alta resolução confirmou as relações estratigráficas precisas entre artefactos e amostras de radiocarbono e revelou camadas discretas de ocupação no local. Grace Ellis, uma estudante de doutoramento na Colorado State University que estuda arqueologia da paisagem e padrões de ocupação do território, diz: “A análise de dados espaciais de alta resolução é crucial para documentar e observar os vários momentos de ocupação humana e reconstruir os padrões ocupacionais, especialmente em ambientes de gruta onde existem processos de formação complexos. A análise espacial da distribuição de artefactos em pedra e ossos no Picareiro destaca a separação espacial discreta das camadas de ocupação no local e demonstra a integridade dos resultados”. Este facto foi confirmado por um processo de análise conhecido por remontagens de artefatos que mostrou que as ferramentas de pedra não sofreram alterações ou movimentos durante os processos pós-deposicionais. “A remontagem é uma tarefa que exige muito tempo e paciência e, neste caso, valeu muito a pena porque os resultados comprovaram as observações geoespaciais”, afirma Telmo Pereira, arqueólogo da Universidade Autónoma de Lisboa e especialista em tecnologia lítica do Paleolítico.

Embora as datas sugiram que os Humanos Modernos chegaram após o desaparecimento dos Neandertais, um outro sítio arqueológico próximo da Lapa do Picareiro, a Gruta da Oliveira, tem evidências da sobrevivência dos Neandertais até há cerca de 37.000 anos. A combinação destes dados revela que os dois grupos podem ter coexistido na região durante vários milhares de anos. “Se os dois grupos viveram simultaneamente e durante algum tempo na região da Serra d‘Aires e Candeeiros, podem ter mantido contacto e trocado não só a sua tecnologia e os seus utensílios, mas também os seus genes. Isso poderia explicar porque muitos europeus têm ainda alguns genes de Neandertal em si”, afirma Nuno Bicho, Diretor do ICArEHB. Lukas Friedl, professor da Universidade da Boémia Ocidental e membro do ICArEHB, acrescenta: “Além das evidências genéticas e arqueológicas, o contexto temporal de alta resolução e as evidências fósseis em todo o continente são cruciais para responder a essa pergunta. Com as camadas-chave preservadas datadas do período de transição, estamos agora à espera de encontrar fósseis humanos que nos digam mais sobre a natureza dessa transição”.

Apesar da sobreposição das datações, não parece haver nenhuma evidência de contato direto entre Neandertais e Humanos Modernos. Os Neandertais continuaram a usar as mesmas ferramentas de pedra que utilizavam antes da chegada dos Humanos Modernos. Estes últimos trouxeram uma tecnologia de talhe da pedra completamente diferente. “As diferenças entre as ferramentas de pedra datadas de antes e depois de há cerca de 41.000 anos são notáveis no Picareiro. Os níveis mais antigos são dominados pela exploração de matérias-primas como o quartzito e o quartzo, e marcados pela presença da tecnologia Levallois, um elemento típico das ocupações Neandertais na Europa. Os níveis Aurignacenses, característicos dos Homens modernos, por outro lado, são dominados pelo sílex e pela produção de lâminas muito pequenas que provavelmente eram inseridas em flechas para a caça”, diz João Cascalheira, membro da direção do ICArEHB e especialista em tecnologia lítica do Paleolítico Superior.

O sílex também foi utilizado em ferramentas para a caça de animais como o veado, cabra-montês e possivelmente coelho. A equipa recuperou alguns dentes caninos de veado, frequentemente usados como adornos pessoais nestas cronologias, mas até ao momento não foram encontrados vestígios da sua manufatura no Picareiro.

Milena Carvalho, doutoranda da Universidade do Novo México e membro associado do ICArEHB, que estuda dietas e paleoecologia de Neandertais e Humanos Modernos, observa: “Os ossos da Lapa do Picareiro constituem um dos maiores conjuntos de fauna paleolítica em Portugal, e a sua preservação é notável. A coleção fornecerá uma enorme quantidade de informações sobre o comportamento humano e a paleoecologia durante o Paleolítico que irá ser estudada ao longo das próximas décadas”.

Os sedimentos da gruta também contêm um registo paleoclimático bem preservado para ajudar a determinar as condições climáticas em vigor na época dos últimos Neandertais e da chegada dos Humanos Modernos. “Estudámos o tamanho dos clastos de calcário e a química dos sedimentos finos que enchiam a gruta”, explica Michael Benedetti, geomorfólogo da Universidade da Carolina do Norte em Wilmington. “A nossa análise mostra que a chegada dos Humanos Modernos corresponde (ou é ligeiramente anterior) a uma fase extremamente fria e seca. As duras condições ambientais durante este período representaram desafios que tanto os Humanos Modernos quanto as populações de Neandertais tiveram de enfrentar”.

A Lapa do Picareiro possui uma enorme quantidade de sedimentos restantes para trabalhos futuros e a escavação está longe de concluída. Haws comentou: “Faço escavações arqueológicas no Picareiro há 25 anos e quando começo a pensar que o sítio já revelou todos os seus segredos, uma nova surpresa aparece. Todos os anos algo notável acontece e continuamos os trabalhos”.

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